segunda-feira, 26 de março de 2012

Em branco



Jorge saía detrás do balcão da padaria às oito da noite, todos os dias, menos aos domingos, que é o dia do Senhor. Sempre ia a missa e nunca esquecia o dízimo. Sabia de cor alguns trechos do santo livro que eram lidos pelo padre, e os repetia, mesmo perante a dúvida do mistério daquelas palavras. Jorge tinha uma relação de submissão e adoração com as causas. Apesar disso, nunca se questionava de onde vinham e nem no que resultavam as coisas do mundo. Para ele, o antes e o depois eram conceitos tão abstratos que nem sequer deixavam vestígios de sua influência. Jorge não podia entender, ele simplesmente não podia.
Como todos os dias, saiu do trabalho, chegou até a parada de ônibus e encontrou seu amigo de sempre, Ramiro. Discutiram sobre futebol: Jorge do Grêmio, Ramiro do Inter. Em poucas palavras, este convenceu o amigo de que o Inter era melhor. Então porque Jorge não mudava de time? Ele era dessas pessoas que não conseguem alterar o que já está sedimentado, entranhado. Suas cabeças estão cheias de labirintos e, uma vez que uma ideia está instalada, se mimetiza e se esconde. Em tais circunstâncias, não se pode mais encontrá-la, apenas é possível ouvir o seu eco vindo das profundezas da mente. Ela se faz presente, mas não se expõe. Jorge às vezes tentava encontrar algum desses conceitos dissimulados e derramar luz sobre eles, no entanto, tal qual arqueólogo inapto e fracassado, desistia. Então, olhava para o interlocutor e abria um sorriso vazio.
De vez em quando, Jorge cogitava uma solução para suas perturbações. Achava que se tivesse uma família, esposa e filhos, seria um homem que leva adentro tudo quanto se pode conter. Em uma posição singular, encarregado da manutenção de um lar -situação em que a responsabilidade o encontraria sem mais-, teria um motivo para ser mais perseverante. Entretanto, com meramente pensar nesse rascunho de intenção, sentia medo e nojo.
Ramiro afirmou que o amigo estava mais branco hoje, e Jorge teve uma visão dele mesmo nu, subindo aos céus, com uma auréola radiante pairando sobre sua cabeça. Olhou para suas mãos enquanto contava as moedas da passagem e viu suas unhas sujas de farinha. Perdeu a ilusão. Contudo uma imagem permaneceu, a de dois anjos carreando-o. Essa representação converteu-se em um carrossel que gira como pião.
Tomou o ônibus e não mais ouvia os comentários de Ramiro, não mais sentia o incômodo, que tantas vezes o destroçara, de perceber-se em contato físico com outrem. Estava completamente submerso no seu universo onírico e cândido. Durante a viagem, diferentes cenas com a mesma temática se sobrepunham às outras, cada vez mais rápido, e mais rápido, e mais rápido.
Com sofreguidão desceu do ônibus, e, agoniado, saiu correndo. Suando, abriu a porta de casa, a do roupeiro e a tampa da pequena caixa. Tomou a foto em suas mãos, beijou-a desesperadamente, lambeu-a repetidas vezes. E com uma voz que vinha de algum canto recôndito daquele seu caos ensurdecedor, exclamou por não suportar:
- Ah, como é lindo este anjinho!

E a mão alcançou o zíper das calças.