Jorge saía detrás do
balcão da padaria às oito da noite, todos os dias, menos aos domingos, que é o
dia do Senhor. Sempre ia a missa e nunca esquecia o dízimo. Sabia de cor alguns
trechos do santo livro que eram lidos pelo padre, e os repetia, mesmo perante a
dúvida do mistério daquelas palavras. Jorge tinha uma relação de submissão e
adoração com as causas. Apesar disso, nunca se questionava de onde vinham e nem
no que resultavam as coisas do mundo. Para ele, o antes e o depois eram
conceitos tão abstratos que nem sequer deixavam vestígios de sua influência.
Jorge não podia entender, ele simplesmente não podia.
Como todos os dias,
saiu do trabalho, chegou até a parada de ônibus e encontrou seu amigo de sempre,
Ramiro. Discutiram sobre futebol: Jorge do Grêmio, Ramiro do Inter. Em poucas palavras,
este convenceu o amigo de que o Inter era melhor. Então porque Jorge não mudava
de time? Ele era dessas pessoas que não conseguem alterar o que já está
sedimentado, entranhado. Suas cabeças estão cheias de labirintos e, uma vez que
uma ideia está instalada, se mimetiza e se esconde. Em tais circunstâncias, não
se pode mais encontrá-la, apenas é possível ouvir o seu eco vindo das
profundezas da mente. Ela se faz presente, mas não se expõe. Jorge às vezes
tentava encontrar algum desses conceitos dissimulados e derramar luz sobre eles,
no entanto, tal qual arqueólogo inapto e fracassado, desistia. Então, olhava
para o interlocutor e abria um sorriso vazio.
De vez em quando,
Jorge cogitava uma solução para suas perturbações. Achava que se tivesse uma família,
esposa e filhos, seria um homem que leva adentro tudo quanto se pode conter. Em
uma posição singular, encarregado da manutenção de um lar -situação em que a
responsabilidade o encontraria sem mais-, teria um motivo para ser mais perseverante.
Entretanto, com meramente pensar nesse rascunho de intenção, sentia medo e
nojo.
Ramiro afirmou que o
amigo estava mais branco hoje, e Jorge teve uma visão dele mesmo nu, subindo
aos céus, com uma auréola radiante pairando sobre sua cabeça. Olhou para suas mãos
enquanto contava as moedas da passagem e viu suas unhas sujas de farinha.
Perdeu a ilusão. Contudo uma imagem permaneceu, a de dois anjos carreando-o. Essa
representação converteu-se em um carrossel que gira como pião.
Tomou o ônibus e não
mais ouvia os comentários de Ramiro, não mais sentia o incômodo, que tantas
vezes o destroçara, de perceber-se em contato físico com outrem. Estava
completamente submerso no seu universo onírico e cândido. Durante a viagem, diferentes
cenas com a mesma temática se sobrepunham às outras, cada vez mais rápido, e
mais rápido, e mais rápido.
Com sofreguidão
desceu do ônibus, e, agoniado, saiu correndo. Suando, abriu a porta de casa, a
do roupeiro e a tampa da pequena caixa. Tomou a foto em suas mãos, beijou-a
desesperadamente, lambeu-a repetidas vezes. E com uma voz que vinha de algum
canto recôndito daquele seu caos ensurdecedor, exclamou por não suportar:
- Ah, como é lindo este
anjinho!
E a mão alcançou o
zíper das calças.