segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O recôndito intelectual do fundo da caverna sombria

Em uma entrevista, Eduardo Galeano diz que os intelectuais são cabezas rodantes, ou seja, cabeças separadas do corpo, mentes que pensam sem sentir. O primeiro argumento para contradizê-lo é a definição do dicionário online Priberam:


intelectual 
adj.
1. Que é do domínio da inteligência.
2. Relativo à inteligência.
3. Espiritual.
s. 2 g.
4. Pessoa que tem gosto predominante pelas coisas do espírito.


Relativo à inteligência, espiritual, gosto predominante pelas coisas do espírito.
Penso de verdade se essa visão negativa que se tem acerca do que significa ser intelectual não está construída justamente para denegrir aqueles que se dedicam a pensar com o espírito e com a inteligência, aqueles que estão realmente ocupados em entender as coisas do mundo, todas as coisas, incluindo-se a inteligência, as emoções, as culturas, as imposições sociais, o status quo; e dispostos a refletir sobre uma melhor condição de existência.

E porque haveria essa degradação da imagem do pensador? Pelo simples fato de que convém para alguns que o saber não se dissipe. Convém que o saber seja mal falado, desprestigiado, visto que quanto menos um indivíduo sabe, mais suscetível está às  interpretações dos outros sobre o seu próprio universo. Delegar a outros a construção da nossa realidade subjetiva é uma tarefa muito perigosa para quem incumbe e muito vantajosa pra quem a efetua. Dominar a relação de um indivíduo com o seu entorno, é dominar suas opiniões e suas atitudes. E isso, interpretado tanto como maquiavelismo, quanto como ingenuidade, aniquila qualquer resquício de justiça social.

E como a imagem do saber é maculada? Muitos meios de comunicação vêm contribuindo através dos tempos para construir a imagem do intelectual como o anti-social, aquele que não pode sair de si, aquele que vive apenas de conhecimento e livros, aquele que está à margem, aquele desajustado, inadaptado, motivo de deboche, incapaz de ter uma relação amorosa, ausente, digno de pena, feio, suscetível a vícios, depravado, egoísta, desequilibrado, neurótico, infeliz; e muitas vezes aquele que se perdeu e distorceu a realidade. “Cuidado: pensar - e sobre tudo ler – enlouquece”. Dessa maneira foi sendo construída a idéia de que o conhecimento é necessário, no entanto é perigoso e, em demasia, faz mal e pode arruinar uma vida. Quantos personagens conhecemos assim? Cito apenas um, na realidade um estereótipo: o cientista maluco.

Pesquisando na Wikipédia em espanhol, encontrei estes nomes citados como intelectuais: Humbold, Goethe, Darwin, Marx, Dostoievsky, Nietzsche, Freud, José Martí, Horacio Quiroga, Gandhi, Einstein, Huxley, Virginia Woolf, Anton Chejov, Heidegger, Luckács, George Orwell, Pablo Neruda, Hannah Arendt, Eric Fromm, Bertolt Brecht, Claude Levi-Strauss, Jean Paul-Sartre, Simone de Beauvoir, Umberto Eco, Paulo Freire, Foucault, Lacan, Chomsky, Mario Benedetti, Ernesto Sábato, Milan Kundera, Carl Sagan, Richard Dawkins, Sthephen Hawking, Saramago, Edgar Morin, entre outros.

Não poderia concordar jamais que estes indivíduos foram ou são “cabeças que rodam”, corpos que falam sem vida. Muito pelo contrário, são corpos que falam precisamente de vida, da condição do homem, de conhecer através da reflexão e não da imposição. Não se vê neles a qualidade de seres perfeitos, nem seres reclusos com visões distorcidas do mundo. Se vê sim a luta contra os dogmas, os fundamentalismos, os preconceitos e a vontade de entender os vários processos aos quais estamos submetidos todo o tempo – sejam eles de ordem científica, comportamental, psíquica, social, etc. Além disso, nenhum deles se fechou em algum porão úmido e escuro querendo evitar a todo custo o contato humano; todos divulgaram amplamente suas idéias aos demais.

Umberto Eco, em uma entrevista a CGIL, central sindical italiana, fala um pouco sobre o que para ele significa ser intelectual:

“(...) se acontece de algum intelectual ser integrante de um partido político e não trabalhar em sua assessoria de imprensa, isso não tem nada a ver com seu papel específico na sociedade. Trata-se de um cidadão como qualquer outro, disposto a colocar suas habilidades profissionais a serviço do próprio grupo. É como um pedreiro que dedica o tempo livre a ajudar na reforma da sede do partido.
(...) acho que os intelectuais têm um dever adicional no caso de pertencer a um grupo - não devem falar contra os inimigos desse grupo (é para isso que servem os porta-vozes), mas contra os próprios companheiros. O intelectual tem de ser a consciência crítica do grupo. Ele existe para incomodar.”

Creio que os intelectuais existem para incomodar, essa me parece a melhor definição. Claro que precisamos fazer algumas ressalvas. Não basta incomodar, é preciso ter um propósito. O intelectual não é um perturbador sem causa, muito menos um oráculo que possui a verdade; o que ele possui é, antes de mais nada, uma pergunta. 
O intelectual é um agraciado que sofre com aquilo que conseguiu. É um mal quisto, um inoportuno, um crítico. Pra ele nada está bem ainda, ele é a insatisfação. O intelectual está sempre lutando para ser escutado por sempre ter uma questão que colocar.

Na verdade, o intelectual só recebe este título porque teve a sorte de poder aceder aos meios e aos mestres que puderam despertar essa inquietude crítica, esse olhar fino da realidade. O intelectual pode estar entusiasmado, mas nunca satisfeito. Pode estar decepcionado, mas não aniquilado. O intelectual tem um bichinho na cabeça que está sempre trabalhando, um diabinho que está sempre cutucando, uma dorzinha de descontentamento.

Um indivíduo chega a ser considerado intelectual da mesma maneira que um engenheiro chega a ser engenheiro, ou um padeiro chega a ser padeiro: com trabalho. O intelectual não nasce intelectual, ele renasce, ele se refaz. E pelo fato de ter adquirido essa qualidade analítica, tão importante que é, tem o dever de compartilhar com os demais suas idéias e argumentos, não só por colaborar com seu entorno, mas também porque faz parte da sua atividade e da constituição da sua própria condição: a constante exposição de seus conceitos e juízos para o exercício de reavaliação de suas crenças, a todo o momento.
Crença não seria a melhor palavra, por que um pensador deve ter muito poucas crenças. Não ter crenças não significa que não tenha objetivos e expectativas. Não ter crenças significa não ter fé; e ter fé significa afirmar resultados que não são passíveis de comprovação (e o que neste mundo seria, finalmente, passível de asseveração?). O exercício da inteligência depende de uma eterna dúvida e um desejo de pensar, adaptar, adentrar e reestruturar a realidade para um bem comum.

Um advogado pode saber bem de leis, um químico saber bem de remédios, um atleta saber bem de exercícios físicos. Já um intelectual sabe bem criticar e pensar.

Protesto contra, discordo de e repudio a visão de que os intelectuais são seres abomináveis. Os intelectuais fazem um trabalho muito importante para a sociedade; não só com seu próprio trabalho, mas também instruindo pessoas a terem a mesma capacidade reflexiva que eles desenvolveram através do seu trabalho - seja por meio de artigos, livros, palestras, aulas em universidades, pesquisas, entrevistas ou uma simples declaração a um meio de comunicação.

Por todos estes motivos, me parece que os intelectuais não deveriam nunca ter medo, vergonha ou rechaço à própria classe que os denomina e os identifica para acercar-se a eles. O adjetivo, antes de ser uma característica, é um meio que habilita a todos a chance de partilhar desse saber bem que eles sabem. 



3 comentários:

  1. Amei o texto!
    Tu fez justo o que tava dizendo ali no texto, em vez de seguir a linha de raciocínio do Eduardo Galeano, foi contra e defendeu a própria ideia. é bem bom mesmo a gente lembrar que pode e deve discordar das ideias de outros intelectuais que não a gente. hehehehehehe
    beios, lindonaaaaaaaaa

    ResponderExcluir
  2. Pior, discordei mesmo.... mas não tenho certeza. Mentira! Dessa vez tenho sim, hahahahahaha.
    Brigadão pelo comentário, beijão!

    ResponderExcluir
  3. lindona, esqueci de mencionar o priberam! adorei, ri muito! hahahahahahah

    és uma intelectual! realmente o texto está de babar! vou compartilhar no meu face.

    ResponderExcluir